domingo, 17 de junho de 2012

[PLURAL] Saboroso



FRANÇOIS SILVESTRE
Escritor
▶ fs.alencar@uol.com.br
Ele não se lembra mais, ou não quer lembrar, do nome de batismo. Não sabe, ou não quer saber, a data de nascimento. Fez o colegial, num colégio de renome. Inteligente, ferino, papudinho.
Dorme onde dá certo, numa calçada ou marquise de alguma loja. O apelido ele deve à forma de agradecer esmola de comida. Quando alguém lhe oferece qualquer alimento, ou tira-gosto, ele saboreia e informa: “saboroso”.
E foi dizendo isso que o tempo se encarregou de batizá-lo. Saboroso é um ébrio permanente. Quando está sóbrio, se é que consegue, esconde-se.
Os que já o viram sóbrio contam que ele é antipático e silente. Não cumprimenta ninguém nem puxa conversa. Bêbado; é falastrão, simpático, comunicativo.
Sob o comando da branquinha, é respeitador e formal. Todo mundo é incelença. Para os poucos que já o viram sem o mé, não é só antipático; é desrespeitoso. “Fi duma égua” é o tratamento mais comum.
Saboroso não toma banho. Não usa escova. Os cabelos, vastos e lisos, ele penteia com os dedos da mão. Talvez você me corrija, não poderia ser com os dedos do pé. O pior é que poderia, sim. Num circo que apareceu por aqui, em tempos idos e esquecidos, havia uma malabarista que penteava os cabelos com os pés. Ela se torcia toda, deixando aparecer o início da regada, que o polpulacho apelidou de cofrinho.
Teve até um caso do dono de uma loja que não resistiu ao rego de uma empregada, de cócoras ao arrumar a prateleira de baixo, teve seu cofrinho invadido pelo dedo do patrão. Foi rebu da peste, que quase termina na junta de conciliação.
Mas voltemos ao nosso herói. Saboroso recebeu uma homenagem, por conta do relançamento de uma cachaça antiga que há tempos estava fora do mercado. Na verdade, poucos sabiam, não era um relançamento nem reabertura do alambique.
Era um estoque velho, guardado, na coleção de um cachaceiro que morreu aos noventa anos.
A família, assim como os parentes de mortos que deixam grandes bibliotecas, queria livrar-se daquele entulho. Se bem que cachaça é muito mais vendável do que livro. E de muito melhores companhias. Inventaram um lançamento, Festa dos papudinhos.
Com isso prepararam a desova daquele estoque de “Gruta”, de rótulos novos nos litros brancos.
Na calçada do Mercado; autoridades civis e eclesiásticas. Militares, não havia. Um soldado solitário, que ficou no outro lado da rua, nem foi convidado.
O orador, neto do falecido, de paletó preto e testa suada, terminou dirigindo-se às autoridades. “Meus agradecimentos aos senhores representantes do Estado Democrático de Direito”. Saboroso tomou um gole, fez um slep do dedo apontador batendo no maior de todos, pôs o copo no balcão, limpou a boca com as costas da mão, aboticou os olhos, gritando: “E haja pinico”! Té mais.

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