[PLURAL] Carrinho de lata
FRANÇOIS SILVESTRE
Escritor
▶ fs.alencar@uol.com.br
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A mistura do domingo, farofada de
sardinha. Com a massa do cuscuz ou farinha de mandioca. Feijão de corda,
arroz da terra, garapa de rapadura.
Mesa? As
coxas dos moleques. Sentados com as costas na parede da cozinha e as
perninhas estiradas, onde a mãe colocava o prato de ágata, de manchas
pretas; das quedas ou batidas no tanque de lavagem.
Nada da sardinha se perdia. Ela abria a
pequena lata até o meio, igualmente nos dois lados. E o moleque que fora
comprar recebia a latinha de presente. Depois de lavada, dobrava o
flandre para cima e lhe dava outra dobra para baixo. Tava ali a imitação
da boleia do caminhão.
A ela se juntava a carroceria, feita de pedaços de ripas e palitos de coqueiros.
O acabamento se dava com a mistura de
água no torrão de anil, usado na lavagem de roupa; que servia de
pintura. A dosagem da água alterava o matiz. Uns carrinhos azuis
escuros, outros mais claros. Um pequeno furo na parte da frente da lata e
um barbante; tava pronto o brinquedo.
As lições recebidas vinham mais do
exemplo do que das falas. Mesmos que as lições faladas fossem sempre
repetidas. Filha de professor primário, ela tinha a instrução básica e
inteligência apurada.
“Nunca invejem as coisas dos outros nem tenham despeito pelo que o que os outros possuem”.
“Nunca invejem as coisas dos outros nem tenham despeito pelo que o que os outros possuem”.
Quando passava, da venda de Nequim, em
busca de casa, o moleque que comprara a sardinha nem sentia o cheiro do
guisado de carneiro ou da carne de boi assada que vinha do casarão do
sítio vizinho. Sua venta fora vacinada contra a inveja.
Na festa do fim de ano, eles iam para a
rua. Na praça principal de cidade, defronte da igreja matriz, viam os
meninos brincando com belos cadilaques vermelhos e jipes com capotas
feitas pelo alfaiate Samuel. Se algum dos meninos os convidasse, eles
entravam na brincadeira alegremente, sem nenhum despeito. Nem se
lembravam dos carrinhos de lata que dormiam nos andaimes da casa do
mato.
“Quando crescer- dizia ela a cada um -e
se ficar rico, não tenha vergonha da sua riqueza. Desde que tudo tenha
sido ganho com trabalho honesto”.
Trabalho e honestidade. A honestidade é
facílima. Leve e fácil de portar. O trabalho, não. É um saco. Invenção
sádica do contrato social. Fazer o quê? Se fosse perfeito não seria a
vida; seria um passeio.
Ela dizia, passando o dedo dobrado na
testa. “Do suor do seu trabalho”. Os moleques estranhavam. Pois viam seu
Raimundão passar todo dia do roçado, banhado de suor, sem nunca ter
juntado riqueza. É que o trabalho sozinho não dá. Precisa de
criatividade.
E assim o tempo passou. Ela finada, eles crescidos. E como o tempo também muda o espaço, os costumes vão-se mudando também.
Este texto é uma invenção em homenagem à mãe de Toinho de Estela, vulgo Antônio Gentil. Té mais
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