segunda-feira, 9 de julho de 2012

[PLURAL] Carrinho de lata

FRANÇOIS SILVESTRE
Escritor
▶ fs.alencar@uol.com.br

A mistura do domingo, farofada de sardinha. Com a massa do cuscuz ou farinha de mandioca. Feijão de corda, arroz da terra, garapa de rapadura.
Mesa? As coxas dos moleques. Sentados com as costas na parede da cozinha e as perninhas estiradas, onde a mãe colocava o prato de ágata, de manchas pretas; das quedas ou batidas no tanque de lavagem.
Nada da sardinha se perdia. Ela abria a pequena lata até o meio, igualmente nos dois lados. E o moleque que fora comprar recebia a latinha de presente. Depois de lavada, dobrava o flandre para cima e lhe dava outra dobra para baixo. Tava ali a imitação da boleia do caminhão.
A ela se juntava a carroceria, feita de pedaços de ripas e palitos de coqueiros.
O acabamento se dava com a mistura de água no torrão de anil, usado na lavagem de roupa; que servia de pintura. A dosagem da água alterava o matiz. Uns carrinhos azuis escuros, outros mais claros. Um pequeno furo na parte da frente da lata e um barbante; tava pronto o brinquedo.
As lições recebidas vinham mais do exemplo do que das falas. Mesmos que as lições faladas fossem sempre repetidas. Filha de professor primário, ela tinha a instrução básica e inteligência apurada.
“Nunca invejem as coisas dos outros nem tenham despeito pelo que o que os outros possuem”.
Quando passava, da venda de Nequim, em busca de casa, o moleque que comprara a sardinha nem sentia o cheiro do guisado de carneiro ou da carne de boi assada que vinha do casarão do sítio vizinho. Sua venta fora vacinada contra a inveja.
Na festa do fim de ano, eles iam para a rua. Na praça principal de cidade, defronte da igreja matriz, viam os meninos brincando com belos cadilaques vermelhos e jipes com capotas feitas pelo alfaiate Samuel. Se algum dos meninos os convidasse, eles entravam na brincadeira alegremente, sem nenhum despeito. Nem se lembravam dos carrinhos de lata que dormiam nos andaimes da casa do mato.
“Quando crescer- dizia ela a cada um -e se ficar rico, não tenha vergonha da sua riqueza. Desde que tudo tenha sido ganho com trabalho honesto”.
Trabalho e honestidade. A honestidade é facílima. Leve e fácil de portar. O trabalho, não. É um saco. Invenção sádica do contrato social. Fazer o quê? Se fosse perfeito não seria a vida; seria um passeio.
Ela dizia, passando o dedo dobrado na testa. “Do suor do seu trabalho”. Os moleques estranhavam. Pois viam seu Raimundão passar todo dia do roçado, banhado de suor, sem nunca ter juntado riqueza. É que o trabalho sozinho não dá. Precisa de criatividade.
E assim o tempo passou. Ela finada, eles crescidos. E como o tempo também muda o espaço, os costumes vão-se mudando também.
Este texto é uma invenção em homenagem à mãe de Toinho de Estela, vulgo Antônio Gentil. Té mais

Nenhum comentário: